Quando em Janeiro de 2020 nos preparávamos para desenferrujar parte do sistema nervoso central, observando os testes de pré-época do MotoGP, traçando desde logo objectivos não sujeitos a contraditório, já que nisto das motas e das ciências exactas convém não vacilar, muito longe estaríamos de imaginar algumas coisas que nos esperavam.
Algumas talvez seja eufemismo, de muitas coisas mesmo.
Ora vejamos.
Marc Marquez, o dono do pedaço, do anexo e ainda das cercanias, iria iniciar o campeonato não com um, não com dois, mas com três disparates, coisa rara e pouco vista que lhe traria uma inesperadíssima factura a ser-lhe apresentada na semana seguinte.
Na primeira corrida, com seu jeito de ataque permanente, viria a entrar a direito pela gravilha, erro primeiro, evitando a queda porque esse é um dos misteres que lhe nasceu como um dom. Tendo ido parar às calendas no regresso ao asfalto, não desistiu e foi-se a eles, ofereceu-nos um recital e uma recuperação ao nível de ópera retumbante no La Scala, exibição para nenhum ser vivo na terra poder reclamar.
Só que, estando já em lugar de pódio, tal não lhe pareceu bom o suficiente e foi em busca de maior quinhão. Eis senão quando, talvez porque os pneus vinham já em regime de horas extraordinárias em virtude da recuperação escadote acima, um aparatoso ‘highside’ atirou Marc para fora da corrida com uma indelicadeza fora do comum, enrolando-se mota e piloto num abraço violento e perigoso. Segundo erro.
Em Jerez II, versão GP da Andaluzia, quatro dias após operação complicada ao úmero, que é ali aquele osso bem grandito que vai do ombro ao cotovelo, Marc cometeria o pecadilho maior, aliás dois, o da gula e o da vaidade, provavelmente coadjuvado em tão desacertada aposta por alguém do seu staff, que terá analisado a situação com a destreza de um elefante em loja de porcelanas, Alberto Puig de sua graça. Após exibição em vídeo de um Marquez extra-terrestre a fazer flexões num pós operatório em que quase podíamos sentir o cheiro do anestésico, quando qualquer comum mortal estaria ainda na fase de se queixar do peso da chávena de chá ao pequeno-almoço, eis que o cerverino mais conhecido do planeta se atira aos treinos livres como gato ao bofe, para pouco depois perceber que de gato pouco tinha, nem agilidade nem as forças, e que o bofe ia a caminho de outros comensais. A factura de tão gritante erro foi-lhe apresentada durante toda a competição, com IVA, IRS, IMI, juros e o mais que teremos ainda de perceber.
Mas uma coisa ficou bem clara, Marc, um genial e sobredotado piloto, cometeu de enfiada três erros e foi isso, e não o destino, a afastá-lo da luta pela revalidação do título.
Marc competiu e… perdeu!
Quartararo iria vencer as duas primeiras rodadas, prometendo a consolidação da revelação que fora no ano anterior, mas chegado o GP em Brno começaria longa travessia sem brilho e de muito pouco proveito, que terminaria com um oitavo lugar final, a quilómetros do que se palpitava nos idos dias de Julho. A muitos quilómetros de facto.
Em quatorze rondas, nove vencedores diferentes, cardápio para todos os gostos, festejaram franceses, sul-africanos, italianos, portugueses, espanhóis.
Portugueses? O senhor disse portugueses???
Pois disse sim, já lá vamos.
Antes, um saltinho ao divã onde encontraremos Il Dottore, um campeoníssimo de trajecto ímpar, um homem que ganha coisas neste assunto das velocidades desde 1996, aventura iniciada lá bem longe, verdade seja dita, ele que este ano faria um pódio e mais três presenças no TOP5, isto para Valentino é como se que na cerimónia das estatuetas ganhasse o Óscar de Melhor Espectador, parece que a vida não andará a correr carregadinha de dias de sol e bem-aventurança para os lados da Yamaha, depois de Fabio, segue-se Tino, para não falar em Maverick, esse que parece cada vez mais o senhor Quase Lá, vá que Morbidelli ainda salvou um bocadinho da herança, mas o palácio parece-nos com demasiadas correntes de ar.
Em final de ano, Dovi e Cal assinam dedicatória no livro e despedem-se, o italiano ao que consta com um olho no burro – sem indirectas -, mirando o lugar vazio e reluzente que poderá aparecer na Honda, o inglês indo-se com tempo para passar fins-de-semana em família, com a benesse de continuar a trabalhar naquele escritório voador, tentando ajudar a Yamaha a descobrir onde estará o seu Wally!
Fala-se que faltará quem coloque a boca no trombone quando houver assunto, Crutchlow descansa-nos e aponta Miller, The Jack como seu sucessor do ‘vamos lá falar a sério’ …
Bagnaia prometeu muito mas encheu-se de azares, Binder lançou um foguete e perdeu-se na procura da cana, contudo há que não perdê-lo de vista, Zarco parece fadado para inspector de seguros, onde há acidente lá está o homem, já não lhe bastava desistir da KTM por ser indomável e logo de seguida ver os mais novos a sacar vitórias como quem acende a luz porque sabe onde fica o interruptor.
Tito Rabat, dizem-nos, abandonará este seu brinquedo de ouro, Nakagami atreveu-se a ir mais longe e mais rápido, sacou uma pole histórica em termos nipónico-estatísticos para logo de seguida se atrapalhar e esbardalhar com tão grande honraria, Petrucci e Aleix são os reis da camuflagem, mal se deu por eles, apesar de Danilo ter feito em le Mans uma inesperada serenata vencedora.
Rins parece ter posto o despertador para tocar a cinco corridas do fim, não lhe chegou para ajudar à dobradinha da Suzuki, Franco ficou-lhe com o ovo do bitoque.
Por fim e antes de Miguel Ângelo, falemos de Pol.
Ai Pol, Pol, como diria o cónego de ‘ya peco yo por tí’ (acedam no Youtube, imperdível), que podemos dizer de ti? Grande piloto, médio estratega, fraco fairplay .. ficamos assim e não nos zangamos? E ‘a ber, a ber’ como ‘serán las cositas en Honda’, se forem sem MM vai ser uma coisa, se forem com MM vai ser um berbicacho dos fortes, certo? Mais para ajudar do que para fazer…
E vamos então ao Miguel Ângelo, o nosso.
MotoGP, Temporada II, vence duas provas, faz duas vezes P5 e quatro vezes P6, depois de iniciar a época repetindo o melhor de 2019, um P8.
Senhores, parece até que entrou na aritmética e sacudiu a equação a golpes de sabedoria, estratégia, garra e saber.
Em Estíria, com a pontinha de sorte reservada aos campeões, inicia a segunda parte de uma corrida interrompida quando seguia em P7, e vai andando, vai subindo, vai andando e espreitando, vai andando e matutando até que na última curva Miller pressente o erro de Pol e atira-se ao pote, e é nesse momento que Falcão vislumbra a nesga que se lhe abre e não hesita, pega em si e na Tech 3, eleva-se ao Olimpo, gritando ‘às armas, às armas’ e dando a Poncharal o doce sabor de uma vitória que ele esperava há 20 anos.
Uma Capela Sistina, fosse o trabalho assinado por seu homónimo.
No AIA, em Portimão, um amadurecido e calmíssimo Oliveira faria contrato de promessa, distrate e escritura, oferecendo-nos vista de mar, de serra e do campo, não deixando um palmo de pista sem a classe do seu dom.
Fosse obra do outro Miguel, do Buoanarroti, e seria Juízo Final, este com cores de gente feliz.
E pronto, venha 2021, Oliveira alaranjado de cima a baixo, nós seguindo sonhadores e formiguinhas em seu exército, que o vírus se despeça sem alardes nem abraços e que, tanto pedimos, as motas voadoras regressem à Mexilhoeira Grande.
E que o AIA se possa vestir das cores de mil gentes.
Pode ser?